Minha versão do Conto de Charles Dickens

11 May 2023 . category: article . Comments
#pessoal #saude #monitoria

Provavelmente você já ouviu falar do conto de Charles Dickens, “Um Conto de Natal”. Se ainda não o conhece ou não lembra do enredo, talvez já tenha assistido alguma adaptação ou referência em outras obras. Para aqueles que desconhecem a história, um breve resumo: Ebenezer Scrooge, um homem avarento, recebe a visita de seu falecido sócio Jacob Marley, que o avisa sobre outras visitas inusitadas dos espíritos do Natal Passado, Presente e Futuro. O espírito do Passado o faz recordar de fatos de sua juventude, como sonhos e alegrias em coisas simples. Já o espírito do Presente mostra o mal que ele está causando às pessoas ao seu redor, tanto passivamente como ativamente. Por fim, o espírito do Futuro o alerta sobre um possível fim, caso Scrooge continue no mesmo caminho.

Se você chegou até aqui, deve ter percebido que este é um texto diferente dos demais deste pequeno blog. O foco não é falar sobre tecnologia de maneira objetiva, embora seja impossível abordar meu presente e futuro sem mencionar a tecnologia. Porém, este não será um tutorial ou algo do tipo.

Por que, então, comecei mencionando a história de Dickens? Confesso que, nos últimos tempos, venho sendo assombrado por um fantasma chamado ansiedade. É difícil falar sobre isso, mas aqueles que trabalharam comigo sabem que sou extremamente preocupado com entregas. Contudo, o preço por isso está se tornando alto: ansiedade, dores no peito, pressão alta e até diabetes. Em abril deste ano, fiz algo que nunca havia imaginado: pedi para sair de um projeto interessante, mas longe de ser concluído e tirei 30 dias de férias (essa é a segunda vez que faço isso em toda minha carreira, a outra foi quando meu filho nasceu). Sentia que a carga de trabalho havia aumentado demais nos últimos tempos e consegui comprovar isso olhando para meus registros de tarefas. Gosto de manter essas métricas para me guiar em algumas decisões e esse dashboard que construí no Grafana me ajudou a tomar a decisão de pedir ajuda no serviço para mudar de projeto. Essas métricas colaboraram muito para essa decisão de pedir ajuda no serviço para mudar de projeto. Eu já mostrei como obtenho parte dessas métricas no post Meu Fluxo de Trabalho. Eu consolidei essas métricas em um dashboard do Grafana. Segue uma imagem do dashboard:

Work Dashboard

Nele é possível constatar a quantidade de horas extras e de dias de trabalho aos finais de semana, ou seja, o tempo dedicado à empresa em que atuo (e permito-me registrar, uma empresa que admiro bastante) e o tempo longe da minha família. Meu descontentamento não se refere ao volume de trabalho em si, mas sim à falta de perspectivas de mudanças nessa rotina.

Esse dashboard, juntamente com outro que elaborei com métricas voltadas à saúde, levou-me a decidir tirar férias e, pela primeira vez em minha trajetória profissional, solicitar mudança de contexto. Senti uma sensação de fracasso ao abandonar um projeto interessante, além de deixar pessoas que realmente, é desagradável, mas a sensação de deixar minha família era ainda pior.

Health Dashboard

Um dos principais objetivos das minhas férias é realizar um check-up completo, a fim de obter uma compreensão abrangente da minha saúde. Inclusive, enquanto escrevo este texto, estou utilizando um monitor de pressão arterial no braço, conhecido como Mapa 24 horas.

Ademais, aproveitei as férias para antecipar nossa tradicional viagem anual que realizamos no meio do ano. Já é o terceiro ano que visitamos a encantadora cidade de Campos do Jordão.

Contudo, além dos desafios no ambiente de trabalho, também estamos enfrentando algumas dificuldades em casa em relação a alguns comportamentos do Pedro. Tudo isso, somado, tem sido extremamente desgastante.

Durante a viagem, acabei me recordando muito do meu avô. Ambos os meus avós tiveram uma importância significativa em minha vida. Inclusive, meu filho leva o nome de Pedro em homenagem aos dois. No entanto, meu avô materno, que era o padrasto de minha mãe, teve um impacto ainda maior em minha vida e eu gostaria de compartilhar um pouco sobre ele. Para mim, ele representa o espírito do Natal passado.

Quando ele se casou com minha avó, eu ainda era um bebê. Vô Pedro não havia se casado anteriormente, tampouco tinha filhos, por isso fiquei muito feliz por ele me ter adotado como neto. E, hoje, eu também sinto que ele era feliz por tê-lo como avô, pois meus primos não o consideravam da mesma forma que eu. Para mim, ele sempre foi “vô Pedro”, enquanto para eles, apenas “senhor Pedro”.

Uma das formas de descrevê-lo é através de um verso da música “Eu não sei na verdade quem eu sou”, do grupo “O Teatro Mágico”: “um homem todo pintado de piadas”. De alguma forma, ele me ensinou a rir. Estava sempre inventando histórias, brincadeiras e sorria constantemente. Apesar de não ter tido uma carreira profissional de sucesso ou de ter ficado rico, nem ter feito conquistas destacáveis no LinkedIn, ele deixou marcas tão profundas em mim que mesmo após 16 anos de seu falecimento, raramente passo um longo tempo sem pensar nele.

Posso dizer que aproveitei a presença dele até o último minuto. Ele faleceu na minha frente, depois de passar a noite toda no hospital conversando comigo. Ele havia sido internado por dores no coração, e eu fiquei ao lado dele, acompanhando-o até o fim. Perto das 7:00 da manhã, falei que precisava ir embora, já que o horário da visita estava acabando. Ele disse algo que eu não entendi muito bem, mas logo em seguida, perguntou: “Não estou falando coisa com coisa, né?” e sorriu. Ele se levantou da cama, sentou-se na cadeira em que eu estava, sofreu um ataque e faleceu.

Apesar da correria que se seguiu, com tentativas dos médicos de ressuscitá-lo, a última imagem que tenho dele em minha mente é falando a frase que citei, e sorrindo.

Por volta de 1994, ele me apresentou o filme “O Vendedor de Linguiça”, do Mazzaropi. Naquela época, com cerca de sete anos de idade, não compreendi muito bem, mas ainda me recordo das gargalhadas de meu avô durante a exibição. Somente após casado assisti ao filme “O Jeca contra o Capeta”, também dirigido por Mazzaropi, e então entendi o seu valor, achando-o sensacional. Infelizmente, meu avô já havia falecido e não pude compartilhar com ele a minha percepção.

Retornando à nossa viagem, tive uma oportunidade incrível. Sugeri a visita ao Museu Mazzaropi, localizado em Taubaté, cidade vizinha a Campos do Jordão, e para minha surpresa, Carla e Pedro concordaram em ir. Essa visita foi muito especial para mim, pois pude mostrar a Pedro um pouco do que meu avô me apresentou. Talvez ele não tenha compreendido tudo, assim como eu não compreendi naquela época, mas para mim foi uma experiência quase mística.

Museu Mazzaropi

Museu Mazzaropi

Museu Mazzaropi

Eu e o Pedro já temos uma grande afinidade. Ele é encontra-se dentro do espectro autista, o que acarreta algumas limitações na comunicação, e existem certas coisas que ele prefere compartilhar comigo do que com a Carla. Ontem, por exemplo, quando ele saiu da escola com um desenho na mão, a Carla perguntou o que era e ele respondeu que não era nada. Mas quando chegou em casa, ele correu para me mostrar o desenho, todo orgulhoso, e eu consegui compreender o que ele queria expressar, deixando-o muito feliz. Em outras ocasiões, ele já disse à Carla que eu entenderia algo que ela não conseguiria. Fico imensamente feliz por isso e começo a repensar minhas prioridades. Existem coisas que ele só compartilha com a Carla, e outras que só comigo, o que faz com que ambos precisemos estar presentes em sua vida.

Considerando minha trajetória e a importância que meu avô teve em minha vida, além de refletir sobre minha relação atual com o Pedro e minha saúde física e mental, comecei a pensar sobre meu futuro.

Há pouco tempo, minha grande preocupação era morrer sem deixar recursos para meu filho e minha amada esposa. Tentei amenizar essa situação por meio de seguros de vida (posso dizer que, financeiramente, já estou valendo mais morto do que vivo), mas, após uma recente experiência, percebi que meu foco mudou. Realmente desejo estar presente na vida do Pedro enquanto eu puder, e para isso, precisarei fazer algumas mudanças em minha vida. Sinto que talvez essa seja uma das últimas, ou a última, oportunidade de mudar. Já faz algumas semanas que fiz algumas mudanças radicais em alguns hábitos com o intuito de melhorar minha saúde. Minha atual preocupação é com meu emprego. Sei que não é um bom momento para mudanças drásticas, mas acredito que é um problema que poderei resolver, enquanto minha ausência na vida do Pedro não poderá ser compensada.

Uma grande preocupação para mim é o tratamento que o Pedro precisa, pois dependemos muito do plano de saúde e do meu emprego para isso.

No final da história de “Um Conto de Natal”, Scrooge diz o seguinte: “Quero viver no passado, no presente e no futuro! Os espíritos dos três viverão, de agora em diante, dentro de mim.”

Do mesmo modo, desejo realizar isso na minha vida, influenciando meu filho como meu avô me influenciou. Para tal, é necessário que eu faça certas escolhas agora. A pressão do cotidiano me faz ter uma visão limitada do meu presente, e a ansiedade me faz encarar o futuro de forma pessimista. Acredito que olhar para o passado e ampliar minha visão do presente - com mudanças de hábitos e um pouco menos de tempo dedicado ao trabalho em prol da minha saúde - poderá me ajudar a vislumbrar um futuro mais esperançoso. Sinceramente, não sei o que acontecerá quando minhas férias terminarem. Há um certo temor devido às condições atuais que vivemos e aos textos que vejo no LinkedIn. Contudo, creio que se continuasse como antes, meu futuro não seria muito promissor. Não posso deixar de reconhecer, porém, que agora tenho esperança de passar mais tempo com minha família.

E, por fim, agradeço imensamente por ler este texto.


Me

Tenho estudado esse mundo mágico da programação desde 2005. Já consegui sustentar minha família usando Ruby, Java, Python, C++ e Javascript. O resto tenho usado para diversão ou aprendizado.